Família, A [Malavita, EUA/França, 2013. Direção: Luc Besson] |
Surpresa agradável, A Família surgiu nos cinemas brasileiros sem muito alarde, apesar dos nomes envolvidos. Aparentava ser um projeto paralelo para todos os envolvidos na produção, e talvez isto tenha tornado-o ainda mais especial, tanto para os próprios tanto para o pequeno público que deve conferi-lo.
A trama se inicia acompanhando a chegada de uma família, tipicamente ítalo-americana, à uma nova casa, localizada na Normandia, interior da França. No início, só o que podemos concluir é isto, mas algumas intrigas são levantadas a partir de diálogos entre a família, que citam por algumas vezes o fato de este ser apenas mais um lugar entre os vários que já moraram e não por muito devem ficar. Pouco depois, entenderemos que eles estão vivendo no local como parte do programa de proteção a testemunhas, já que anos atrás tinham envolvimento com a máfia e foram os responsáveis por delatar um importante gângster para a polícia. O problema é que hábitos são difíceis de se mudar, e uma família que tem máfia em seus instintos dificilmente conseguirá perdê-la.
Em primeiro lugar, é necessário considerar que a produção não busca construir um filme sério de gangsteres, e quem busca isto certamente sofrerá uma decepção. Por isto mesmo, soa como um projeto paralelo para quem está envolvido, e foi justamente o que deu a aura da produção, que por não exigir tanto em termos dramáticos e sérios, acabou deixando todos os atores e o diretor bastante a vontade para realizar o trabalho. A Família brinca com o sub-gênero, brinca com questões históricas e culturais, com suas personagens e com a violência. Mas não pense que é uma comédia pura, pois o filme ainda reserva pitadas de tensão e dramaticidade muito bem encaixadas, que elevam sua profundidade para muito além de uma comédia despretensiosa, com a exploração de camadas que são o que o torna tão surpreendente.
A relação entre a família Blake - codinome que adotam para esta etapa do programa - torna-se conturbada pela necessidade de manter o cinismo para suas relações exteriores. Para cada nova cidade em que moram, eles tem que passar por uma longa adaptação cheia de mentiras, já que não podem cogitar revelar a verdade de seu passado para ninguém mais, por isto, é fácil se colocar no lugar deles e se identificar com seus problemas. Desde os primeiros dias nesta nova cidade, todos já reconhecem - como citado -, que não terão a oportunidade de passar muito tempo ali, mas cada um seguirá seu dia. O problema é que a adaptação para cada um deles torna-se mais difícil por esta loucura da situação em que vivem, e a questão dos hábitos de uma família mafiosa se encaixa perfeitamente nisto, já que esta realidade da família torna-os mais acostumados com a presença da violência para resolver os seus problemas e crises. O filho, Warren (John D'Leo), inspira-se no pai e organiza um sistema praticamente mafioso naturalmente em sua escola - negociando de lições de casa até cigarros -, a filha, Belle (Dianna Agron), resolve seus problemas com o assédio de garotos com a violência - no caso, uma raquete -, enquanto a mãe, Maggie (Michelle Pfeiffer), resolve problemas que qualquer dona de casa teria com, bem... fogo. O pai, Fred, ou Giovanni Manzoni (Robert De Niro), parece ter se acostumado a controlar a raiva e levar sua rotina da forma mais tradicional possível - para depois, vir a descontar num encanador. Há uma brincadeira bastante sutil com a questão do Sonho Americano, já que na família Blake, reside a aparência de uma família tradicional americana, mas quando nos aprofundamos mais em seus costumes, conhecemos pessoas que ignoram grande parte dos princípios morais e são adeptas do cinismo, e ainda por cima temos adolescentes que estão bem longe de terem os sonhos e objetivos típicos de jovens estereotipados americanos.
O humor gerado justamente com a questão da chegada dos americanos não para por aí, uma vez que esta também gera uma referência histórica, pois a Normandia também representou, durante a Segunda Guerra Mundial, o palco para a chegada dos americanos para derrotar os nazistas que mantinham-se no território francês. Com isto, a visão que os habitantes da região têm dos americanos tem uma linhagem quase heroica - o que justifica o fato de uma festa na casa dos Blake ter atraído a vizinhança como um grande evento -, e ver esta família americana deturpando sua visão do país é mais um aspecto interessante do filme. Mas o que explora a nuance mais interessante de A Família também é responsável por gerar um humor negro na produção: a tamanha naturalidade com que as personagens principais lidam com a violência para resolver qualquer pequeno problema. Além de gerar os momentos mais divertidos do filme - em especial, os acessos de raiva que povoam os pensamentos, e por algumas vezes a realidade, do pai da família -, este ponto é capaz de atingir uma camada de estudo interessante sobre o comportamento humano, em sua necessidade dos instintos mais naturais, a violência, que é explorado da forma mais cotidiana possível.
Embora seja hábil e inteligente ao abranger todas estas questões, e especialmente em não subestimar seu espectador - não utiliza, por exemplo, a bobeira de uma narração em off explicativa para narrar o passado dos protagonistas, algo que é explicado conforme o desenvolvimento; e também não torna expositiva a abordagem da questão histórica - o roteiro de Luc Besson e Michael Caleo não está completamente livre de falhas, que variam desde algumas mais simples como o esquecimento de uma sub-trama relacionada aos problemas que Warren está tendo na escola ou outras gritantes como a conveniência que leva os mafiosos a descobrirem a localização da família Manzoni (o nome apropriado, no caso) - pois muita suspensão de descrença é necessária para aceitar de bom grado que uma piada em inglês escrita por Warren no jornal da escola fosse alcançar a prisão americana onde o gângster está preso e levá-lo a se lembrar que ele fora responsável por contá-la, anos atrás, numa reunião onde a família esteve presente -, algo que, por sorte, consegue ser revelado por uma boa execução da ação do confronto que envolve estes mafiosos e os protagonistas no terceiro ato, quando eles chegam à Normandia. A fotografia é bastante eficiente ao evocar as cores de clássicos filmes de máfia e ainda representar competentemente os contrastes entre a casa dos Blake e os outros locais da cidade - com a utilização das cores escuras dentro da casa para ilustrar a tensão ali passada e o contraste entre seu ambiente e o exterior da cidade, em cores mais claras. O trabalho de Luc Besson, no entanto, atinge a regularidade dentro da proposta descontraída do projeto, logo, nem compromete - realizando um trabalho eficaz na variação entre o bom-humor e a tensão -, nem almeja maiores pretensões - o diretor não efetua planos muito ousados e ainda dispensa o bem-vindo uso de um contra-plongée na sequência que mostra a chegada dos gangsteres à cidade.
As atuações individuais parecem compreender perfeitamente a proposta de cada personagem que interpretam, já que as personagens de A Família, embora tenham um aprofundamento dramático particular, também representam as brincadeiras que o longa faz com estereótipos do Cinema, em especial no personagem de Robert De Niro, que apresenta-se muito a vontade vivendo a caricatura da persona do mafioso que muitas vezes viveu na sétima Arte - como é bom e cada vez mais raro ver o ator numa boa performance -, na interessante Maggie Blake de Michelle Pfeiffer numa interpretação que, por algum motivo, me remeteu àquela outra mãe de uma família extravagante vivida pela atriz em Sombras da Noite. Enquanto isto, Tommy Lee Jones ganha a cena com mais um policial mal-humorado quando interage com De Niro durante o debate cinematográfico em que sua raiva contida contrasta divertidamente com o comportamento do personagem principal que parece finalmente estar se soltando - e botando tudo a perder -, e os adolescentes vividos por Dianna Agron e John D'Leo ganham seus merecidos momentos de destaque na trama. Todos realmente parecem muito à vontade em cena.
É interessante como podemos traçar um paralelo entre a família do título e a água da torneira de sua casa que insiste em se manter marrom, já que quando esta torna-se finalmente cristalina - e eles finalmente se adaptam -, será novamente abandonada - e para uma nova cidade os Blake (que ainda se despirão do sobrenome) partirão. Para onde aqueles quatro estariam indo na viagem que encerra a fita? Provavelmente, para uma nova experiência de adaptação. E nos resta esperar que, desta vez, eles tenham mais tempo para utilizar sua água cristalina.
P.S.: Teria sido a divertidíssima sequência da projeção de Os Bons Companheiros uma dica do produtor deste filme aqui e diretor do referenciado, Martin Scorsese?
[Avaliação final: ****]
Até a próxima.
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