A experiência fragmentada que marca a vida
contemporânea contamina, inevitavelmente, a maneira como passamos a produzir e
contar histórias. Narrativas perderam a percepção de integridade, a ideia da
"experiência" que as envolvia foi dissolvida e, hoje, as
acompanhamos, seja por streaming ou outros meios, de forma
mais distanciada, resfriada, pensada sob o espectro da distração, da atenção
dividida e, por consequência, reduzida. À narrativa tradicional, cabe nos
reaproximar. Propor o (re)encanto. Com Meryl Streep e Tom Hanks como anfitriões
e um experiente Steven Spielberg a guiar, The Post - A Guerra
Secreta nos convida para uma boa história.
Situado na década de 1970, o
longa-metragem acompanha as tensões de um esforço jornalístico legítimo e
marcante. Uma equipe, a do The Washington Post, empenhada na
arriscada missão de publicar os chamados Pentagon Papers,
um amplo dossiê de informações confidenciais das ações do governo estadunidense
na Guerra do Vietnã - muito provavelmente, o primeiro evento histórico que teve
suas ocorrências diretamente afetadas pela participação da mídia - e lidando
com o dilema das consequências que necessariamente os atingiriam – em especial,
a represália da Casa Branca, que poderia até mesmo fechar as portas do jornal.
Seguindo, tanto em termos ideológicos quanto formais, a escola de "Todos
os Homens do Presidente" (1976), de Alan J.Pakula, e "Spotlight" (2015),
de Thomas McCarthy, The Post - A Guerra Secreta é um ótimo
"filme de jornalismo", beneficamente sem maiores rodeios ou manias de
grandeza. Sua narrativa tradicional, não se engane, não representa pobreza ou
simplismo no fazer cinematográfico: basta um contra-plongée, por
exemplo, para compreendermos essencialmente o sentimento de engrandecimento e
satisfação dos protagonistas, Kay Graham (Streep) e Ben Bradlee (Hanks), ao deparar-se
com as capas dos muitos outros veículos que, a partir do exemplo do Post,
corajosamente também divulgam os arquivos - e este é apenas um bom momento.
Costurado a quatro mãos por Liz Hannah e
Josh Singer – este último, responsável também pelo citado “Spotlight” – e ambientado quatro décadas atrás, o texto é atualíssimo
e toca em discussões relevantes a seu tempo de realização. Ainda que estejamos,
dos pontos de vista histórico e cronológico, cada vez mais distantes dos
períodos ditatoriais, em poucos momentos fez-se tão necessário discutir a
liberdade de expressão. E Spielberg sabe muito bem disso. Enquanto perfis
democráticos muito se expõem, figuras como Donald Trump ameaçam a existência de
veículos que o criticam; instituições midiáticas, por sua vez, cada vez mais
comprometidas com a necessidade de sobrevivência financeira e lucratividade e
menos engajadas jornalisticamente, agem em conluio velado e silenciam conteúdo
internamente para não se prejudicarem: em tempos de “liberdade digital”, é paradoxalmente
complicado ser, de fato, jornalista.
Assim, a obra assimila o quanto representam, em termos de resistência
e enfrentamento das inverdades, as ações de seus retratados - o que pode soar
artificial para os que encaram um cinema mais cínico, contemporâneo. Desde a
executiva Kay Graham, provocada por um universo “testosterônico”, no qual homens brancos são os únicos autorizados
a dar ordens e comandar ações, e obrigada a encará-lo obstinadamente - o que é
sintetizado numa sequência, de tom astuciosamente teatral, na qual a personagem
sobe uma escadaria de mulheres, sugerindo a posição subalterna de tais, para
adentrar numa ameaçadora sala de reuniões exclusivamente ocupada por homens de
terno, encarando-a de cima para baixo; mas é ela, ao tomar as rédeas, quem muda
seus parâmetros - e valoriza ainda mais o desempenho de sua intérprete,
acertadamente vulnerável. Até o exercício esforçado de qualquer jornalista da
equipe.
"Se vivemos num mundo em que o governo dos Estados Unidos vai nos dizer o que podemos ou não publicar, então o Washington Post já deixou de existir."
- Ben Bradlee
A legitimação da prática jornalística requer necessariamente que se coloque diante de um complexo conjunto de dilemas. Enfrente-se algumas das convenções que nos parecem mais pétreas - e The Post – A Guerra Secreta lida com estes conflitos. O que estaríamos dispostos a arriscar em nome da exposição pública da verdade? A soberania de nossa pátria? A manutenção de relações com quem nos importamos? A integridade financeira do veículo no qual publicamos? E, se hoje, a imprensa parece se colocar tão raramente no cerne de tais questionamentos e riscos, distanciando-se perigosamente, trata-se da mera constatação de que retomar a boa, compromissada e confrontante prática jornalística é uma lição que todos os envolvidos com a revelação dos Pentagon Papers, fossem eles funcionários do The Washington Post ou do New York Times, nos deixaram.
E é preciso um cineasta como Steven Spielberg para encaminhar esta percepção. É essencial que - numa toada mais sóbria, assumida desde “Ponte dos Espiões” - a câmera de Spielberg dinamize cada travelling pela redação e suas inquietas máquinas de escrever e, mais do que isso, acompanhe com toda a caprichosa admiração, em planos mais lentos, as tradicionais grandes prensas operando para levar a público cada um daqueles valiosos exemplares. Ambiente com nostalgia um momento da história no qual, empregando uma adaptação livre da fala – clichê, mas tudo bem – do filme, a imprensa “serviu aos governados, não aos governantes”. Quando decide filmar The Post – A Guerra Secreta, o responsável por “Tubarão” suplica a necessidade de retomar o caráter de um tempo no qual, embora estivessem tão mais distantes de nosso alcance, a informação e a verdade eram alcançadas com maior frequência, justa e necessariamente pelo compromisso de jornalistas como os do The Washington Post na tarefa de exercer seu ofício com paixão, determinação e comprometimento, características que parecem tão rechaçadas pelo mundo contemporâneo. E, se hoje temos as ferramentas à mão, resta que saibamos utilizá-las com nível semelhante de empenho. Que sirva de lição.
The Post, EUA, 2017. De Steven Spielberg. ★★★★
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