terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

The Post - A Guerra Secreta


A experiência fragmentada que marca a vida contemporânea contamina, inevitavelmente, a maneira como passamos a produzir e contar histórias. Narrativas perderam a percepção de integridade, a ideia da "experiência" que as envolvia foi dissolvida e, hoje, as acompanhamos, seja por streaming ou outros meios, de forma mais distanciada, resfriada, pensada sob o espectro da distração, da atenção dividida e, por consequência, reduzida. À narrativa tradicional, cabe nos reaproximar. Propor o (re)encanto. Com Meryl Streep e Tom Hanks como anfitriões e um experiente Steven Spielberg a guiar, The Post - A Guerra Secreta nos convida para uma boa história.


Situado na década de 1970, o longa-metragem acompanha as tensões de um esforço jornalístico legítimo e marcante. Uma equipe, a do The Washington Post, empenhada na arriscada missão de publicar os chamados Pentagon Papers, um amplo dossiê de informações confidenciais das ações do governo estadunidense na Guerra do Vietnã - muito provavelmente, o primeiro evento histórico que teve suas ocorrências diretamente afetadas pela participação da mídia - e lidando com o dilema das consequências que necessariamente os atingiriam – em especial, a represália da Casa Branca, que poderia até mesmo fechar as portas do jornal. Seguindo, tanto em termos ideológicos quanto formais, a escola de "Todos os Homens do Presidente" (1976), de Alan J.Pakula, e "Spotlight" (2015), de Thomas McCarthy, The Post - A Guerra Secreta é um ótimo "filme de jornalismo", beneficamente sem maiores rodeios ou manias de grandeza. Sua narrativa tradicional, não se engane, não representa pobreza ou simplismo no fazer cinematográfico: basta um contra-plongée, por exemplo, para compreendermos essencialmente o sentimento de engrandecimento e satisfação dos protagonistas, Kay Graham (Streep) e Ben Bradlee (Hanks), ao deparar-se com as capas dos muitos outros veículos que, a partir do exemplo do Post, corajosamente também divulgam os arquivos - e este é apenas um bom momento.

Costurado a quatro mãos por Liz Hannah e Josh Singer – este último, responsável também pelo citado “Spotlight” – e ambientado quatro décadas atrás, o texto é atualíssimo e toca em discussões relevantes a seu tempo de realização. Ainda que estejamos, dos pontos de vista histórico e cronológico, cada vez mais distantes dos períodos ditatoriais, em poucos momentos fez-se tão necessário discutir a liberdade de expressão. E Spielberg sabe muito bem disso. Enquanto perfis democráticos muito se expõem, figuras como Donald Trump ameaçam a existência de veículos que o criticam; instituições midiáticas, por sua vez, cada vez mais comprometidas com a necessidade de sobrevivência financeira e lucratividade e menos engajadas jornalisticamente, agem em conluio velado e silenciam conteúdo internamente para não se prejudicarem: em tempos de “liberdade digital”, é paradoxalmente complicado ser, de fato, jornalista.

Assim, a obra assimila o quanto representam, em termos de resistência e enfrentamento das inverdades, as ações de seus retratados - o que pode soar artificial para os que encaram um cinema mais cínico, contemporâneo. Desde a executiva Kay Graham, provocada por um universo “testosterônico”, no qual homens brancos são os únicos autorizados a dar ordens e comandar ações, e obrigada a encará-lo obstinadamente - o que é sintetizado numa sequência, de tom astuciosamente teatral, na qual a personagem sobe uma escadaria de mulheres, sugerindo a posição subalterna de tais, para adentrar numa ameaçadora sala de reuniões exclusivamente ocupada por homens de terno, encarando-a de cima para baixo; mas é ela, ao tomar as rédeas, quem muda seus parâmetros - e valoriza ainda mais o desempenho de sua intérprete, acertadamente vulnerável. Até o exercício esforçado de qualquer jornalista da equipe.

"Se vivemos num mundo em que o governo dos Estados Unidos vai nos dizer o que podemos ou não publicar, então o Washington Post já deixou de existir."
- Ben Bradlee

A legitimação da prática jornalística requer necessariamente que se coloque diante de um complexo conjunto de dilemas. Enfrente-se algumas das convenções que nos parecem mais pétreas - e The Post – A Guerra Secreta lida com estes conflitos. O que estaríamos dispostos a arriscar em nome da exposição pública da verdade? A soberania de nossa pátria? A manutenção de relações com quem nos importamos? A integridade financeira do veículo no qual publicamos? E, se hoje, a imprensa parece se colocar tão raramente no cerne de tais questionamentos e riscos, distanciando-se perigosamente, trata-se da mera constatação de que retomar a boa, compromissada e confrontante prática jornalística é uma lição que todos os envolvidos com a revelação dos Pentagon Papers, fossem eles funcionários do The Washington Post ou do New York Times, nos deixaram.

E é preciso um cineasta como Steven Spielberg para encaminhar esta percepção. É essencial que - numa toada mais sóbria, assumida desde “Ponte dos Espiões” - a câmera de Spielberg dinamize cada travelling pela redação e suas inquietas máquinas de escrever e, mais do que isso, acompanhe com toda a caprichosa admiração, em planos mais lentos, as tradicionais grandes prensas operando para levar a público cada um daqueles valiosos exemplares. Ambiente com nostalgia um momento da história no qual, empregando uma adaptação livre da fala – clichê, mas tudo bem – do filme, a imprensa “serviu aos governados, não aos governantes”. Quando decide filmar The Post – A Guerra Secreta, o responsável por “Tubarão” suplica a necessidade de retomar o caráter de um tempo no qual, embora estivessem tão mais distantes de nosso alcance, a informação e a verdade eram alcançadas com maior frequência, justa e necessariamente pelo compromisso de jornalistas como os do The Washington Post na tarefa de exercer seu ofício com paixão, determinação e comprometimento, características que parecem tão rechaçadas pelo mundo contemporâneo. E, se hoje temos as ferramentas à mão, resta que saibamos utilizá-las com nível semelhante de empenho. Que sirva de lição.

The Post, EUA, 2017. De Steven Spielberg. ★★



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