domingo, 25 de fevereiro de 2018

Lady Bird: A Hora de Voar


A cultura arrivista na qual vivemos altera fatalmente o período humano da juventude. Preciso deixar minha cidade para alcançar meus sonhos, preciso das oportunidades da cidade grande, preciso deixar minha família para alcançar a independência, preciso deixar aqueles com quem estou para atingir meus objetivos, preciso deixar de ser como sou para tornar-me bem sucedido. São as lógicas imperativas que passam a nos afligir. Tais aflições consomem a consciência de uma faixa populacional que, consequentemente, é hoje acometida pelos distúrbios psicológicos contemporâneos - depressão, burnout, ansiedade, estresse. E ainda àqueles que não chegam a tal estado, através de problemáticas como a instabilidade emocional - incapacidade de manter relações sólidas, sensação de deslocamento, dissolução e esvaziamento constante de interesses, anseios e projetos. Conflitos internos que, afinal, são parcela pétrea da etapa de amadurecimento de quase todo sujeito contemporâneo - incluindo a Lady Bird (Saoirse Ronan).


Admiradora declarada do cinema de Alexander Payne - responsável, dentre outros títulos, pelo excepcional "Nebraska" (2013) -, a rainha do Mumblecore, Greta Gerwig assume a direção e o roteiro de Lady Bird e, a exemplo do citado diretor, oferece doses biográficas através das personagens que constrói - elementos como o apreço pelas origens e a ambientação em sua cidade natal - Gerwig é natural de Sacramento, tal qual Payne é de Nebraska - são característicos da filmografia daquele. A personagem-título, certamente, carrega consigo a natureza de uma revisita da protagonista de "Frances Ha" (2013), de Noah Baumbach, às conflituosas, mas necessárias e engrandecedoras memórias de um período que, à vera, costuma surtir efeitos universais: a partida da adolescência.

Para não comprometer sua universalidade, portanto, o texto coloca para a moça, que tem em Christine seu nome de batismo, obstáculos comuns e, mesmo, arquetípicos de narrativas que retratam o famigerado coming of age. Não há muito de novo, pois, na jornada de uma jovem para superar os "padrões inadequados" que a cercam, degustar os prazeres do amor - e enfrentar suas frustrações - e, enfim, alcançar a autodescoberta que desvenda o próprio futuro. E isto não é exatamente um problema.

A originalidade não é requerimento para a construção de uma personagem - os princípios de seus dilemas e conflitos podem ser conhecidos, mais importa a forma e a autenticidade com a qual serão desenvolvidos a partir daí. Do moletom que a diferencia das outras alunas no colégio católico às "roupas adultas" - calça jeans, salto alto etc - que a vestem quando circula por Nova York, Lady Bird é uma personagem visualmente composta para que possamos compreender sua constante e exaustiva tentativa de enquadrar-se numa figura - o que é contrastante com a força de sua personalidade. Esta pressão é a mesma que a coloca num jogo ágil de aproximação e afastamento de outros seres humanos, impedindo a solidificação de relações emocionais - o abandono de Julie (Beanie Feldstein) e Danny (Lucas Hedges) por Jenna (Odeya Rush) e Kyle (Thimotée Chamalet) é um traumático efeito disto -, e que atrita sua relação com a mãe, Marion (Laurie Metcalf, ótima), contrária às pretensões da garota. E, embora toque nos mais tradicionais temas da juventude, é nesta última questão que a obra atinge sua autenticidade. Maduro, o texto busca assimilar um ponto aflitivo que, grave, normalmente é negligenciado: o impasse transicional refletido na oposição entre aqueles que sempre tivemos como referências - nossos pais - e as explosivas discordâncias que, inevitavelmente, passamos a ter destes, potencialmente devastadoras e culposas da dissolução de uma ligação essencial. Lady Bird acerta ao, nesta relação, jamais eleger um heroísmo na personagem-título e antagonizar sua matriarca; entende que, afinal, os anseios de Bird e as inibições de Marion não sõ oposições significativas, mas meras manifestações potencializadas - e facilmente sobrepostas - pelo permanente afeto existente entre elas, com bagagens e em fases distintas das próprias histórias. Mais do que isso, expõem o quão semelhantes são suas (fortes) personalidades - e, por isso, conflitantes.

Unindo-se a "Califórnia" (2015), de Marina Person, como exemplo de narrativa capaz de abordar com maturidade as instabilidades e sonhos da juventude feminina, Lady Bird peca por, contraditoriamente, "cortar as asas" de sua protagonista - no que diz respeito à liberdade de desenvolvimento da personagem. Quando a irmã Sarah-Joan (Lois Smith) relata o modo "afetivo e cuidadoso" como Bird descreve a sua Sacramento, ou mesmo na dinâmica que a faz claramente refletir a personalidade da mãe - que nunca abandonou a cidade -, o texto de Greta Gerwig revela a tese que carrega consigo para sua principal retratada. Por trás de toda a contestação raivosa manifestada pela jovem sobre a terra natal, reside o apreço velado pela mesma, culminado numa espécie de "Não há lugar como o nosso lar" exposta no desfecho. E, é claro, não se trata da mensagem - honesta, aliás - enquanto o problema por si; ele está, entretanto, nos truques e decisões tomadas pelo roteiro exclusivamente para encaminhá-la para este "destino final", o que restringe severamente as possibilidades de crescimento e fascínio da personagem em nome da significação pretendida por sua jornada. Por sorte, esta artificialidade não compromete o envolvimento do espectador com a verdade, ainda predominante, na jornada da protagonista.

Acertadamente decidido a não "abraçar todos os discursos", Lady Bird é um projeto que, acima de tudo, manifesta carinho e honestidade no trato com sua personagem principal.

Lady Bird, EUA, 2017. De Greta Gerwig. ★★


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