terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Todo o Dinheiro do Mundo


“Scott Free Productions.” Assim é chamada a produtora responsável por Todo o Dinheiro do Mundo, fundada pelos irmãos Ridley e Tony Scott há mais de três décadas. Tony Scott, nascido em 1944, trilhou sua trajetória nos confins do cinema de ação, estabelecendo uma marca própria no gênero, com sequências estilizadas e um ritmo refinadamente acelerado, sobretudo nas fases mais maduras da carreira – a franquia “John Wick” e o recente “Atômica”, por exemplo, bebem diretamente desta fonte -, até decidir tirar sua própria vida, em 2012, deixando-nos um legado importante, e muitas vezes subestimado. Ridley, nascido sete anos antes do irmão, ascendeu rapidamente para o alto escalão do cinema hollywoodiano graças ao sucesso de “Alien: O Oitavo Passageiro” e “Blade Runner – O Caçador de Androides” e, desde então, transita inconstantemente entre diferentes estilos e abordagens em produções grandiosas, habitualmente premiadas e progressivamente contestadas. Na última década, especializou-se na realização de “versões do diretor” nas quais, segundo o próprio, pode manifestar sua liberdade criativa sem as restrições impostas pelos estúdios. Trabalhar na “Scott Free” deve assegurá-lo de tal exercício. Mas liberdade para quê, Sir Ridley?


Badalado quase que exclusivamente por sua presença no “radar do Oscar”, Todo o Dinheiro do Mundo nos apresenta às obscuras figuras da família Getty, dona de uma inestimável fortuna construída na segunda metade do século XX por meio da indústria petrolífera. Uma grande controvérsia cerca seu principal pilar, Jean Paul Getty (Christopher Plummer, inexplicavelmente indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante (aliás, explicável: a situação de Kevin Spacey)), entretanto: a incapacidade de preocupar-se com qualquer coisa que não fosse seu dinheiro. A avareza do sujeito é colocada à prova quando J.P.Getty III (Charlie Plummer), seu mais querido neto, é sequestrado, e a mãe, Gail Harris (Michelle Williams), de mãos atadas, recorre ao magnata para poder pagar o resgate do jovem... ou melhor, não é: a anunciada fatalidade sequer se aproxima de sensibilizá-lo mais do que as cifras de seu faturamento, e o senhor não hesita em terceirizar as negociações que definirão a sobrevivência ou não do neto – delegando-as para Fletcher Chase (Mark Wahlberg) -, esclarecendo que não pretende investir um dólar na missão.

Desde o primeiro quadro, Todo o Dinheiro do Mundo não esconde ser um projeto que tende a encarar o mundo de forma unidimensional e composta de antagonismos e papéis imutáveis, simplistas. Não basta que conheçamos Jean Paul Getty em sua faceta mais inescrupulosa e desumanizada pela cegueira do acúmulo de bens: é preciso que, enquanto recusa-se a destinar quatro milhões de dólares para salvar a vida de um familiar, o petroleiro adquira um quadro caríssimo e, pouco depois, revele a maquete de sua nova mansão - com requintes de crueldade. Getty, representante fiel de uma mentalidade a ser erradicada da sociedade, não precisa de defesa – seus prestigiados advogados a proporcionariam eficientemente, todavia -, mas pressupõe-se que, numa narrativa cinematográfica competente, todas as personagens devam ser construídas de maneira humana, dotada de complexidades e contornos que convidem o espectador a desvendar suas camadas e intenções; o texto de David Scarpa – baseado no livro de John Pearson -, entretanto, prefere cuspir na cara de seu público uma figura sem qualquer dimensão além do estereótipo do antagônico, aquele que não pode ser visto além do papel de vilão que deverá desempenhar. Um mero obstáculo para a heroína da trama.

O roteiro tacanho, porém, não isenta Ridley Scott. O diretor, igualmente motivado a não oferecer qualquer margem de complexidade ao seu objeto de retratação, transporta para a tela os mais rasteiros e óbvios manuais de realização cinematográfica: sempre que chegamos aos espaços ocupados pelo assumido antagonista, Scott compõe quadros cinzentos, de uma fotografia fria e chuvosa, acompanhados por tons excessivos e sombrios da trilha sonora de Daniel Pemberton, que parece esforçar-se para equiparar a figura de Christopher Plummer ao icônico Drácula de Béla Lugosi – e, portanto, só será perdoável caso se trate de uma brincadeira metalinguística de absoluta genialidade.

Catalisada pela construção de J.P.Getty, a sensação de uma narrativa amarrada por estereótipos não termina aí. Cada um dos diálogos que conduzem a desinteressante relação entre Gail Harris e Fletcher Chase, por exemplo, são meros e insistentes reforços e explanações da persona e das convicções de cada uma delas – ou seja: exposições repetitivas de quem elas são – em atrito, impedindo o amadurecimento de uma relação verossímil, mantendo-a superficial e, pior do que isso, fazendo com que aquelas duas figuras possam soar obtusas e cheias de si. Ainda assim, a interpretação de Michelle Williams, embora remunerada com um contracheque absurdamente inferior ao de seu companheiro de cena - um Mark Wahlberg no piloto automático -, é capaz de afastar sensivelmente sua personagem de tal impressão, ao compô-la honestamente e equilibrar a necessidade de força e enfrentamento com o inevitável abatimento de uma mãe que se vê em vias de perder um filho.

Inconstante, Todo o Dinheiro do Mundo, uma obra tão decidida no que tange à representação ideológica e ao julgamento moral sobre as ações de suas personagens, demora a decidir-se de fato que tipo de narrativa pretende ser. O caminho do retrato histórico da sombria e oscilante família Getty, que nos leva a um cenário tipicamente setentista – e Ridley Scott parece ter assistido a “Invocação do Mal” ao acreditar que basta amarelar a paleta de cores e tocar “Time of The Season” (The Zombies) para nos contextualizar à década de 1970 -, é deixado de lado para dar lugar a um thriller de sequestro e resgate cercado e movido pelo conflito familiar que, inevitavelmente, revela-se envolvente em alguns momentos, especialmente graças ao esperto elo de ligação entre o público e a situação de J.P.Getty III, representado pelo acidentalmente simpático sequestrador Cinquanta (Romain Duris, num bom trabalho) e, conforme anteriormente mencionado, pela competência de Michelle Williams. No mais, trata-se de uma narrativa obsoleta e tão injustificavelmente cheia de si quanto figuras como o “colecionador de vazio”, Jean Paul Getty.

All The Money in The World, EUA, 2017. De Ridley Scott. ★★



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