“Scott
Free Productions.” Assim é chamada a produtora responsável por Todo o Dinheiro do Mundo, fundada pelos
irmãos Ridley e Tony Scott há mais de três décadas. Tony Scott, nascido em
1944, trilhou sua trajetória nos confins do cinema de ação, estabelecendo uma
marca própria no gênero, com sequências estilizadas e um ritmo refinadamente
acelerado, sobretudo nas fases mais maduras da carreira – a franquia “John Wick” e o recente “Atômica”, por exemplo, bebem diretamente desta fonte -, até
decidir tirar sua própria vida, em 2012, deixando-nos um legado importante, e
muitas vezes subestimado. Ridley, nascido sete anos antes do irmão, ascendeu
rapidamente para o alto escalão do cinema hollywoodiano graças ao sucesso de
“Alien: O Oitavo Passageiro” e “Blade Runner – O Caçador de Androides” e, desde
então, transita inconstantemente entre diferentes estilos e abordagens em
produções grandiosas, habitualmente premiadas e progressivamente contestadas.
Na última década, especializou-se na realização de “versões do diretor” nas
quais, segundo o próprio, pode manifestar sua liberdade criativa sem as
restrições impostas pelos estúdios. Trabalhar na “Scott Free” deve assegurá-lo de tal exercício. Mas liberdade para
quê, Sir Ridley?
Badalado quase que
exclusivamente por sua presença no “radar do Oscar”, Todo o Dinheiro do Mundo nos apresenta às obscuras figuras da
família Getty, dona de uma inestimável fortuna construída na segunda metade do
século XX por meio da indústria petrolífera. Uma grande controvérsia cerca seu
principal pilar, Jean Paul Getty (Christopher Plummer, inexplicavelmente
indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante (aliás, explicável: a
situação de Kevin Spacey)), entretanto: a incapacidade de preocupar-se com
qualquer coisa que não fosse seu dinheiro. A avareza do sujeito é colocada à
prova quando J.P.Getty III (Charlie Plummer), seu mais querido neto, é sequestrado,
e a mãe, Gail Harris (Michelle Williams), de mãos atadas, recorre ao magnata
para poder pagar o resgate do jovem... ou melhor, não é: a anunciada fatalidade
sequer se aproxima de sensibilizá-lo mais do que as cifras de seu faturamento,
e o senhor não hesita em terceirizar as negociações que definirão a
sobrevivência ou não do neto – delegando-as para Fletcher Chase (Mark Wahlberg)
-, esclarecendo que não pretende investir um dólar na missão.
Desde o primeiro quadro, Todo o Dinheiro do Mundo não esconde
ser um projeto que tende a encarar o mundo de forma unidimensional e composta
de antagonismos e papéis imutáveis, simplistas. Não basta que conheçamos Jean
Paul Getty em sua faceta mais inescrupulosa e desumanizada pela cegueira do
acúmulo de bens: é preciso que, enquanto recusa-se a destinar quatro milhões de
dólares para salvar a vida de um familiar, o petroleiro adquira um quadro
caríssimo e, pouco depois, revele a maquete de sua nova mansão - com requintes
de crueldade. Getty, representante fiel de uma mentalidade a ser erradicada da
sociedade, não precisa de defesa – seus prestigiados advogados a
proporcionariam eficientemente, todavia -, mas pressupõe-se que, numa narrativa
cinematográfica competente, todas as personagens devam ser construídas de maneira
humana, dotada de complexidades e contornos que convidem o espectador a
desvendar suas camadas e intenções; o texto de David Scarpa – baseado no livro
de John Pearson -, entretanto, prefere cuspir na cara de seu público uma figura
sem qualquer dimensão além do estereótipo do antagônico, aquele que não pode
ser visto além do papel de vilão que deverá desempenhar. Um mero obstáculo para
a heroína da trama.
O roteiro tacanho, porém, não
isenta Ridley Scott. O diretor, igualmente motivado a não oferecer qualquer
margem de complexidade ao seu objeto de retratação, transporta para a tela os
mais rasteiros e óbvios manuais de realização cinematográfica: sempre que
chegamos aos espaços ocupados pelo assumido antagonista, Scott compõe quadros
cinzentos, de uma fotografia fria e chuvosa, acompanhados por tons excessivos e
sombrios da trilha sonora de Daniel Pemberton, que parece esforçar-se para
equiparar a figura de Christopher Plummer ao icônico Drácula de Béla Lugosi –
e, portanto, só será perdoável caso se trate de uma brincadeira metalinguística
de absoluta genialidade.
Catalisada pela construção de
J.P.Getty, a sensação de uma narrativa amarrada por estereótipos não termina
aí. Cada um dos diálogos que conduzem a desinteressante relação entre Gail
Harris e Fletcher Chase, por exemplo, são meros e insistentes reforços e
explanações da persona e das convicções de cada uma delas – ou seja: exposições
repetitivas de quem elas são – em atrito, impedindo o amadurecimento de uma
relação verossímil, mantendo-a superficial e, pior do que isso, fazendo com que
aquelas duas figuras possam soar obtusas e cheias de si. Ainda assim, a
interpretação de Michelle Williams, embora remunerada
com um contracheque absurdamente inferior ao de seu companheiro de cena -
um Mark Wahlberg no piloto automático -, é capaz de afastar sensivelmente sua
personagem de tal impressão, ao compô-la honestamente e equilibrar a
necessidade de força e enfrentamento com o inevitável abatimento de uma mãe que
se vê em vias de perder um filho.
Inconstante, Todo o Dinheiro do Mundo, uma obra tão
decidida no que tange à representação ideológica e ao julgamento moral sobre as
ações de suas personagens, demora a decidir-se de fato que tipo de narrativa
pretende ser. O caminho do retrato histórico da sombria e oscilante família
Getty, que nos leva a um cenário tipicamente setentista – e Ridley Scott parece
ter assistido a “Invocação do Mal” ao acreditar que basta amarelar a paleta de
cores e tocar “Time of The Season”
(The Zombies) para nos contextualizar à década de 1970 -, é deixado de lado
para dar lugar a um thriller de
sequestro e resgate cercado e movido pelo conflito familiar que,
inevitavelmente, revela-se envolvente em alguns momentos, especialmente graças
ao esperto elo de ligação entre o público e a situação de J.P.Getty III,
representado pelo acidentalmente simpático sequestrador Cinquanta (Romain
Duris, num bom trabalho) e, conforme anteriormente mencionado, pela competência
de Michelle Williams. No mais, trata-se de uma narrativa obsoleta e tão
injustificavelmente cheia de si quanto figuras como o “colecionador de vazio”,
Jean Paul Getty.
All The Money in The World, EUA, 2017. De Ridley Scott. ★★
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