Tese Sobre um Homicídio |
Tesis Sobre un Homicidio, Argentina, 2013. Direção: Hernán Golfrid. Roteiro: Patricio Vega, com base no livro de Diego Paszkowski. Elenco: Ricardo Darín, Alberto Ammann, Natalia Santiago, José Luiz Mazza. Duração: 106 min. Lançamento no Brasil: 26 de julho de 2013, nos cinemas.
O suspense investigativo Tese Sobre um Homicídio diferencia-se da maioria das obras do gênero que povoam os cinemas brasileiros e normalmente são oriundas das terras norte-americanas, já que procura fugir da linhagem do Cinema comercial e segue uma linha mais detalhista e profunda, ainda que durante boa parte de sua projeção mantenha um ritmo digno de um bom suspense hollywoodiano, por isso é uma pena que esteja em cartaz no Brasil em tão poucas salas.
Embora o caso principal da premissa do longa apareça já no início do segundo ato, os eventos ocorridos durante os primeiros minutos do mesmo são de extrema importância para o que os sucederá, algo que vamos compreendendo conforme sua evolução acontece. O especialista em direito criminal Roberto Bermudez (Ricardo Darín, facilmente o principal nome do cinema sul-americano atual) ministra um respeitadíssimo seminário para advogados e dedica-se intensamente ao trabalho, como percebemos por seu profissionalismo ao lecionar. Na atual edição de seu seminário, Roberto recebe como aluno Gonzalo (Alberto Ammann), que viremos a descobrir ser bastante conhecido do professor, mas tudo segue normalmente até que, da janela da sala de aula, os alunos e o próprio Roberto presenciam a chegada da polícia para recolher o cadáver de uma jovem assassinada no estacionamento do complexo. Enquanto todos se assustam com o que estão vendo, Roberto observa com certa suspeita.
Ainda que a troca de olhares entre Roberto e Gonzalo durante a cena acabe deixando a descoberta que surgirá mais previsível, o que acontece a partir deste momento é que o professor ficará tomado pela incessante busca de conexões que liguem seu aluno Gonzalo ao crime, pois toda a sua suspeita pela identificação do assassino caiu sobre este, e com isto percebemos o personagem principal cada vez mais envolvido com o crime e sua própria investigação - já que esta ocorre paralelamente à investigação da polícia. Diversos elementos que surgem durante o primeiro ato são utilizados principalmente para nos situarmos em relação à situação atual das personagens que se ocuparão da trama, sendo que sua principal movimentação surgirá somente a partir deste evento descrito.
Algo muito interessante de notar na construção do protagonista é que este aparenta durante todo o tempo estar excessivamente envolvido em seu trabalho - seja quando leciona, como comprovado com as sequências que abordam o seminário; ou ainda mais, quando envolve-se na investigação do assassinato, já que fica obcecado pela busca por ligações de Gonzalo com o crime -, e assim podemos observar características importantíssimas para o estudo de personagem, que é feito através de Roberto, a começar por sua ambiguidade - ao mesmo tempo que está em busca por justiça, não aceita sequer a possibilidade de que seu suspeito não seja o culpado -, e a própria obsessão por seu trabalho está fortemente envolvida com sua frustração, já que apesar de profissionalmente respeitado, o professor parece por diversos momentos esconder sua frustração pessoal e natureza solitária, que o longa transmite a partir de detalhes como sua constante adesão a vícios - o cigarro, a bebida, o girar da moeda -, suas ligações durante a madrugada, sua insônia - repare na negação ao café - ou na própria fotografia dentro de sua casa, que insiste em tons mais acinzentados. É um personagem inteligente e com sua visão própria e peculiar de mundo - o que justifica alguns de seus comentários mais ácidos, nos poucos momentos de humor do filme -, e que se olharmos mais de longe, notaremos alguém extremamente bem-sucedido - respeitado por colegas de profissão, idolatrado por alunos e com algumas conquistas amorosas pelo caminho -, mas que se torna mais interessante quando olhamos mais de perto e notamos alguém que, ainda assim, é inteligente e profissional, mas que se vê tomado pela situação que vive. Claro que há alguns problemas que prejudicam sua construção - o principal é seu excessivo poder de influenciar na investigação oficial do crime, que acaba não sendo muito realista para um professor de direito -, mas isto não apaga o extremamente eficiente estudo de personagem que é feito em cima do protagonista, e não tenha dúvidas que alguns dos méritos desta construção se atribuem ao próprio Ricardo Darín, que sem dúvida criou alguns trejeitos para atribuir ainda mais qualidade a seu Roberto Bermudez como personagem, e trabalha com excelência.
O roteiro de Patricio Vega concentra alguns erros, como o excesso de tempo gasto nas sequências do protagonista lecionando - e alguns diálogos, por serem estreitamente sobre a relação entre o professor e os alunos, acabam não funcionando já que o espectador não foi apresentado a esta relação -, algumas previsibilidades que incomodam um pouco quando surgem - como a já citada troca de olhares que entrega a suspeita - e um pequeno erro de continuidade - quando Roberto liga para Mônica visando contá-la sobre uma descoberta que fez na investigação, mas na verdade ele só vem a descobri-la alguns minutos depois -, mas são apenas pequenos problemas que não apresentam déficit para a obra como um todo, ainda mais quando este mesmo roteiro nos apresenta alguns diálogos de interessante crítica ao sistema judiciário - ainda que um maior aprofundamento aqui fosse bem vindo - aliados de um mistério competente, apesar das previsibilidades, e o verdadeiro destaque de Tese Sobre um Homicídio, que reside no trabalho da construção, estudo e queda de um personagem. Sem mencionar ainda algumas sutilezas que serão um prato cheio para o espectador mais atento, como quando o psicopata (e aluno) imita o gesto de girar a moeda como seu professor faz, sabendo que está sendo observado por este, e é justamente nesta guinada que o terceiro ato do filme cresce, já que passamos a conhecer mais também sobre a personalidade do assassino ou quando somos levados a concluir que uma cena - no museu, quando Gonzalo descreve um quadro de Picasso para Roberto - não tinha necessidade para a trama, mas quando vamos conhecendo mais sobre sua personalidade, tudo passa a fazer sentido. Enfim, é um texto rico em termos de linguagem.
Linguagem esta que funciona também por estar aliada a uma direção e um trabalho de fotografia que, embora não sejam brilhantes, são bastante competentes, seja em relação ao foco em pequenos detalhes em cena - como na espada da justiça - ou numa fotografia que torna mais fácil identificar quando a cena que vemos é apenas uma ilusão do protagonista - a iluminação fica mais amarelada, enquanto se escurece ocultando alguns elementos de cena -, além dos interessantes enquadramentos - curiosamente, quase sempre em cenas silenciosas - em que o que surge atrás deste mesmo personagem fica um pouco embaçado, denotando que ele deve estar em destaque na cena.
Anda cada vez mais raro presenciarmos um exercício como este num longa que se determina à narração de um mistério, um jogo de gato e rato, em que os personagens ficam em segundo plano, quando o foco são apenas as reviravoltas em si. Nos raros casos em que uma construção mais profunda ocorre, esta costuma estar focada no psicopata, o que acrescenta mais um diferencial a esta película. Em certo momento, uma das personagens do longa diz "nenhuma tese é perfeita". Tese Sobre um Homicídio também não, mas é ao menos excelente, uma obra sobre a qual há muito a se dizer, e considerando que este texto não constitui numa tese, espero que o mínimo necessário tenha sido dito.
[Avaliação Final: ****¹/2]
Texto originalmente publicado no Loggado.
Até a próxima.
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