segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Caça, A [ou as reflexões provocadas por este]


Jagten, Dinamarca, 2012. Direção: Thomas Vinterberg. Roteiro: Thomas Vinterberg e Tobias Lindholm. Elenco: Mads Mikkelsen, Thomas Bo Larsen, Annika Wedderkopp, Susse Wold, Alexandra Rapaport. Duração: 115 min. Lançamento no Brasil: 22 de março de 2013, nos cinemas.

Poucas coisas me encantam mais no Cinema do que os breves momentos nos quais noto-me com raiva, provocado, querendo fazer algo e interferir na história que estou presenciando na tela, em seus personagens e suas ações, mas sendo impedido pelas limitações claras de aquela ser uma história atuada, e não algo que estou realmente vivendo. A sétima Arte tem dessas coisas fascinantes, que tornam uma história ficcional algo capaz de nos arranhar e incomodar como se fosse algo que vivemos na realidade, mas não são muitas as histórias capazes de causar isto. Temos uma em A Caça.

Não falo aqui de utilizar todos os elementos narrativos do audiovisual para a construção de uma atmosfera cinematográfica, que gere sentimentos simples, qualidade que pode ser atribuida a um bocado um pouco maior de filmes, mas sim de sensações dificilmente descritíveis através de termos técnicos, que mexem no emocional do espectador. O professor Lucas (Mads Mikkelsen, espetacular) é quem vive a experiência triste, levando cada um a pensar como seria estar em seu lugar, por mais lamentável que isto fosse. 

Extremamente dedicado a sua profissão, ele é um homem bom, querido entre seus amigos e que ajuda quem puder, como a pequena Klara (Annika Wedderkopp), uma de suas alunas, com quem caminha até a escola diariamente para que esta não vá sozinha. Ainda que dedique-se muito a todos os seus alunos, o professor é mais próximo dela -também por ser amigo de seus pais -, mas isto nada quer dizer. Até que um dia, sem motivo aparente, a garota menciona (a seu modo, devo ressaltar) para a diretora da escola que viu o pênis de Lucas. A afirmação inicialmente não gera consequências e aparenta ser inofensiva, provavelmente uma confusão da criança na escolha das palavras; com o tempo, no entanto, a diretora não esquece-se do que ouviu, decidindo assim questionar inicialmente o próprio professor, e depois uma autoridade maior, para saber como lidar com a questão. De um inicial mal entendido, o relato da aluna, ainda que jamais torne-se mais claro, acaba ganhando maiores proporções através dos olhos da diretora do que do acusado e até da própria Klara, atingindo o conhecimento dos outros professores, pais, da polícia e de toda a cidade, que volta-se contra o acusado de ter abusado sexualmente da criança, sem jamais ouvir a versão deste da história mal contada. As proporções são incontroláveis.

"A mentira está se espalhando.", diz a capa do DVD. Não restam dúvidas de que o abuso do professor não aconteceu e o relato - não propriamente o da garota, mas sim o que este se tornou - é mentiroso, o que poderia levar a abordagem de Thomas Vinterberg facilmente a fazer julgamentos e posicionar-se de forma maniqueísta, tornando o falsamente acusado uma grande vítima, mas o cineasta foge de truques e do caminho mais fácil, deixando que o espectador até chegue a pegar-se tendo leves dúvidas sobre o caráter de Lucas - especialmente por sua personalidade misteriosa -, ainda que saiba de sua inocência. Esta última certeza é necessária justamente para os sentimentos provocados pela película, que perderiam grande parte do sentido se o contrário fosse provado. Observar um homem inocente tornando-se centro de uma história mentirosa que leva a sociedade a voltar-se contra ele, modificando completamente sua vida num período tão curto de tempo, tornando cada um daqueles com quem antes convivia a tornarem-se juízes falsos de seu caráter e sem sequer conhecer completamente as condições do que estava acontecendo é algo capaz de causar reações emocionais até no ser humano mais frio.

Mas os questionamentos provocados pela situação apresentada em A Caça são ainda mais profundos e abrangentes, como na relação das influências exteriores daquela criança que a levaram a inventar a história - repare como a linguagem que ela utiliza para se referir ao pênis é a mesma utilizada por seu irmão no dia anterior -, no sensacionalismo aplicado a cada nova versão da história - que dá uma boa noção das consequências de um boato espalhado -, ou mesmo na reflexão sobre a crueldade que a humanidade pode atingir, quando decide punir um ser humano inocentado pela justiça e pela realidade, retirando as condições de sua própria vida e convívio, simplesmente por este ter ferido suas convicções através da suposição de um que certamente é um dos mais cruéis existentes, e por isto capaz de gerar consequências tão extremas. Quando a inocência de um homem é negada pela sociedade, esperanças decaem. Por isto, o vazio na visão de cada um daqueles personagens crescia. Um pai que não enxergava mais esperanças ao encarar a possibilidade de um homem em quem tanto confiava ter feito isto com sua filha, e o professor, que conhecia sua inocência, mas incompreensivelmente era agredido das mais diversas formas pela sociedade que o julgou com base numa história mal contada. Vinterberg permite a reflexão sobre nossa própria sociedade e seus pré-julgamentos a partir disto, e utiliza-se da atmosfera criada para representar o vazio e a crueldade com que Lucas fora tratado, sempre com cores frias e uma trilha sonora praticamente ausente. A falta de esperanças também reflete-se nas atitudes de algumas personagens, como a mãe, que mesmo ouvindo da filha que aquilo não passava de um mal entendido, preferiu apenas desistir de continuar tentando mudar a situação e sucumbir a probabilidade da crueldade cometida como se esta fosse comprovada.

No momento em que observamos a cachorrinha de Lucas sendo jogada morta em seu jardim, mesmo com sua inocência comprovada pela justiça, torna-se difícil conter-se quieto na poltrona e não ficar com raiva dos responsáveis, mas ao mesmo tempo refletir, e pensar na probabilidade que teríamos de acabar fazendo o mesmo. Não estou dizendo que saíriamos matando animais de estimação, não, mas será que nossos instintos também nos levariam a fazer um pré-julgamento de Lucas e, a partir disto, tratá-lo de uma forma diferente, seja cruel ou não, por acreditarmos que ele teria feito tamanha atrocidade, embora sem ouvir sua versão? Com seres humanos, nunca se sabe. Afinal de contas, na vida não somos espectadores com acesso à versão legítima da história, e acabamos por muitas vezes sujeitos aos assustadores pré-julgamentos.

Atualização: Sobre o desfecho escolhido por Vinterberg e Lindholm, e as possíveis reflexões e discórdias provocadas, enxergo apenas um realizador sendo fiel ao pessimismo que propôs em sua visão do ser humano proposta até ali, uma vez que, embora aparentemente tendo recuperado sua confiança dentro da sociedade, Lucas, por todas as punições e rótulos que recebeu desta, jamais deixaria de ser uma presa dos julgamentos do ser humano. Jamais deixaria de ser a caça.

[Avaliação final: *****

Até a próxima.

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