sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Porto, O


Le Havre, França/Alemanha/Finlândia, 2011. Direção e roteiro: Aki Kaurismaki. Elenco: André Wilms, Blondin Miguel, Elina Salo, Jean-Pierre Darroussin. Duração: 93 min.

Uma palavra que poderia muito bem ser utilizada para definir esta película seria "universal", pelos mais variados motivos. Seja pelo doce protagonista Marcel (André Wilms), que aceita e supera as diferenças, ou pela questão da imigração, capaz de unir todas as culturas num único espaço geográfico.

A premissa, diretamente, já atinge todos os públicos de forma acessível e consequentemente universal, ao narrar a estória o velhinho - e interprete este adjetivo de forma respeitosa, por favor - Marcel Marx, um senhor que vive na pequena Le Havre, cidade portuária localizada na região francesa da Normandia; o homem ocupa seu tempo entre o trabalho informal de engraxar sapatos, as paradas em bares e pequenos mercados - onde por vezes furta mercadorias, embora sob os olhos dos proprietários - e o convívio com sua amada - e após, doente - esposa. Um dia, um grupo de imigrantes ilegais oriundos da África chegam à cidade através de um contêiner, e apenas um garoto, Idrissa (Blondin Miguel) consegue escapar das autoridades locais, mantendo-se refugiado na cidade, onde acaba conhecendo Marcel, que em sua bondade acaba fazendo o máximo para ajudar a esconder o menino e ajudá-lo a encontrar sua família, também de imigrantes, ainda que arrisque-se ou deixe de pensar nos próprios problemas para isto.

O trabalho do diretor e roteirista Aki Kaurismaki divide-se num contraste entre o sutil e o explicito, por alguns momentos, sem jamais perder a beleza narrada. Se uma troca de olhares entre o médico e Marcel bastariam, em certo momento, para notarmos que a senhora estava seriamente doente e mentia para o marido, o texto investe num diálogo alguns minutos após que explicita esta situação. A relação entre o protagonista e sua esposa, no entanto, exige do espectador a inferência de que estes já não eram assim tão próximos, embora Marcel claramente ainda seja um homem apaixonado. Mas se a grande questão aqui não reside no relacionamento do casal, e sim na relação entre o senhor e seu jovem refugiado, neste ponto O Porto utiliza-se de uma questão na qual não havia muito de novo a se explorar para realizar uma experiência prazerosa, mas com um algo a mais.

Embora constitua uma obra claramente otimista - pela bondade aparentemente inesgotável de certas personagens, percebe-se isto -, o longa reserva seu espaço para uma visão mais melancólica da receptividade da imigração no local, onde as autoridades imediatamente negam-se a receber os recém-chegados (ainda que por meios ilegais) de forma humanamente digna, preferindo apenas mandá-los de volta do modo mais fácil possível, para que suas aparências de uma Europa perfeita possam ser mantidas. Por mais que a questão seja amenizada dentro da proposta do filme, o diálogo está presente. Marcel, no entanto, sabe que não é nenhum inocente e nem por isso recebeu oportunidades abaixo do que merecia - pelo contrário, continua recebendo a amizade até da proprietária da pequena mercearia para a qual tanto deve -, e isto o ajuda a compreender os dilemas pelos quais Idrissa passa. Muito embora este diálogo possa ser considerado o único elemento de realmente inovador na trama, que sem muitas saídas acaba apoiando-se no lugar-comum da procura do velho Marcel pelo necessário para continuar mantendo o garoto longe dos olhos da polícia e próximo aos de sua família, o que inclui até a organização de um evento beneficente - e sobre isto tudo, ainda que falte originalidade, há a certeza de eficiência na abordagem sensível de Kaurismaki que consegue provocar no espectador a torcida pelo "herói" da trama.

Consequentemente, O Porto acaba tratando-se de uma fábula. Numa sociedade em que a inocência, confiança, bondade, perdão e esperança são valores cada vez mais deturpados, torna-se difícil de acreditar que alguém poderia sair por aí roubando pequenas coisas em mercados sendo perdoado por seus proprietários, que um senhor aparentemente conservador abrigaria um pobre imigrante de bom grado, um rígido inspetor policial esqueceria-se de tudo em nome da esperança - embora uma sequência anterior já desse sinais disto - no fim das contas ou que uma idosa recuperaria-se tão facilmente de uma doença grave. Mas, ainda que alguns destes excessos prejudiquem as resoluções do desfecho e sua verossimilhança, talvez O Porto esteja apenas querendo, por uma vez, trabalhar a favor do sonho mais puro. E graças a isto, constrói uma experiência prazerosa.

[Avaliação final: ***]

Até a próxima.

sábado, 23 de novembro de 2013

Voo ao Passado: Era do Rádio, A

Era do Rádio, A
Radio Days, EUA, 1987. Direção e roteiro: Woody Allen. Elenco: Seth Green, Dianne Wiest, Mia Farrow, Josh Mostel, Danny Aiello. Duração: 88 min.

Nas memórias de um garoto, interpretado por Seth Green, mas provavelmente um retrato do próprio Woody Allen, em sua fase infantil, residem diversas memórias de uma época em que a Segunda Guerra Mundial assustava a população, enquanto a mídia que reinava era o rádio. Cada uma das histórias contadas pelo garoto, normalmente envolvendo conhecidos ou familiares, envolviam, de alguma forma, o rádio - do programa favorito de um, ao sonho de utilizar sua voz como instrumento de trabalho da outra.

Naquela que, ao menos para mim - e entre as que vi -, é a obra máxima do grande cineasta, reside uma excelente comédia com toques emocionais, em seu universo próprio. Se por vezes o artista abre-se para a nostalgia emocionada ao relatar a melancolia de notar que a grande era do rádio estava chegando ao fim, por outras este parece voltar à infância ao escolher desfechos inacreditáveis - e indubitavelmente hilários - para algumas das sub-tramas que propõe-se a narrar - como no caso do gordinho judeu que se torna comunista após algumas horas na casa dos vizinhos, ou na invasão alienígena falsa narrada por Orson Welles no rádio que livrou a tia do garoto de uma provável nova enrascada romântica -, mas não pense que este absurdo nos desfechos atrapalha; pelo contrário, são algumas provas mais da imaginação fértil de Allen trabalhando a favor do bom humor.

Mesmo quando se deixa ser levado pelo ridículo, A Era do Rádio ainda abre espaço para dialogar sobre a influência da mídia presente em seu título na sociedade da época. E a magia do rádio certamente contaminou cada instante da fita. 

[Avaliação final: *****]

Até a próxima.

sábado, 16 de novembro de 2013

Capitão Phillips

Captain Phillips, EUA, 2013. Direção: Paul Greengrass. Roteiro: Billy Ray, com base no livro de Richard Phillips e Stephan Talty. Elenco: Tom Hanks, Barkhad Abdi, Mahat M.Ali, Faysal Ahmed, Catherine Keener. Lançamento no Brasil: 08 de novembro de 2013, nos cinemas. 

Por mais que estivesse há alguns anos sem trabalhos de destaque como em tempos passados, Tom Hanks seguia como um de meus atores favoritos. Mas a falta de uma atuação arrebatadora do astro nesta fase bem mais madura de sua carreira era sentida, até que Capitão Phillips foi lançado.

No papel do personagem-título, Tom Hanks volta a entregar uma grande atuação e aproveita todos os dramas da história narrada pelo longa. História esta que já é relativamente conhecida e divulgada, abordando o capitão Richard Phillips (obviamente), que parte num para realizar um trabalho no comando do navio MV Maersk Alabama. A eficiente escolha da brevidade na apresentação do personagem nos leva a crer que ele é um homem simples, dedicado à família e bastante competente no que faz, portanto este seria apenas mais um trabalho a ser realizado, com a responsabilidade de qualquer outro. Quando atravessa o reconhecidamente perigoso trajeto marítimo da Somália, no entanto, o navio acaba sofrendo o ataque de piratas somalis que o invadem com o objetivo de sequestrá-lo, e acabam conseguindo. Perdendo o poder sobre a embarcação, o capitão tenta das formas e estratégias possíveis manter-se no controle e entrar num acordo com os sequestradores, e acaba-se arriscando no lugar de sua tripulação, sendo levado no sequestro para retirar os piratas do navio e deixá-lo, juntamente com sua tripulação, em segurança.

Utilizando-se da dramática história real e da presença de Tom Hanks como atrativos para o público, Capitão Phillips conta com bem mais do que isso para fugir do simplismo pela conquista de bilheterias, ainda que sua narrativa seja relativamente tradicional. Relativa, e nunca completamente, pois a condução aplicada por Paul Greengrass encontra o equilíbrio praticamente perfeito para a história que se propõe a contar, afastando-se de exageros dramáticos mas nunca aproximando-se, também, de uma abordagem seca que tornaria mais difícil o alcance do emocional de seu espectador.

Embora a pirataria seja mais explorada na história do Cinema como algo lendário - Piratas do Caribe e suas continuações são provas disto -, ou que ao menos fez parte de um distante passado, o roteiro de Billy Ray a partir do livro de Stephan Talty e do próprio Phillips, traz uma nova visão da pirataria, esta contemporânea e bastante real, às telas. Desde os momentos calmos no navio com poucos diálogos, passando pelo drama de sobrevivência e trazendo a visão de ambos os lados à sua abordagem, adicionando mais um ótimo ícone à filmografia do roteirista que já conta com ótimos trabalhos como os de Intrigas do Estado e Jogos Vorazes. Observe como o último fator apresentado entre as qualidades do texto adiciona à obra uma camada adicional, da crítica social e política, característica marcante tanto nos trabalhos mencionados do roteirista Billy Ray quanto nos do diretor Paul Greengrass - Vôo United 93 está aí para confirmar isto -, aqui vemos com elegância e sutileza esta questão sendo abordada. Em poucos diálogos - especialmente na primeira sequência com o capitão dentro do baleeiro, já sequestrado -, o longa consegue entrar no ponto que seria facilmente esquecido por obras mais convencionais norte-americanas, ao não esquecer-se de que os sequestradores somalis não estão realizando aquele crime simplesmente por serem os "vilões maus", mas por necessidades em conta da falta de condições para sobreviverem com dignidade no país onde vivem, constantemente com seus recursos saqueados por países maiores na imposição dos interesses capitalistas do desenvolvimento. Não que isto justifique realizar ações criminais, mas a falta de condições imposta a um ser humano desde o seu nascimento muitas vezes o condena ao crime sem que ele sequer compreenda isto, e ver este ponto abordado - ainda que brevemente - e dando origem a um comentário social é sempre gratificante para um cinéfilo que deseja ver profundidade em maior grau numa grande produção.

Mas se temos um novo exemplo em Capitão Phillips de como o diretor Paul Greengrass sabe realizar uma boa crítica política, o longa também adiciona à filmografia do diretor mais um bom exemplo de como este sabe contar uma boa história com tensão - já vimos isto em dois dos filmes da trilogia Bourne, comandados por ele -, utilizando-se aqui de todo o desespero que ronda a tomada de um navio para empregar os recursos que têm em mãos na criação de uma atmosfera tensa, especialmente em sua característica câmera inquieta, que aumenta o clima de tensão e realismo. Com sequências que exigem cortes mais rápidos - especialmente durante o ato do sequestro do navio, em si - e outras bem mais longas - neste caso, mais presentes durante a negociação do resgate -, a direção faz-se marcante como a grande qualidade do filme, ainda que permita uma notável queda no ritmo de sua narrativa a partir do início das negociações, que tomam um pouco mais de tempo do que deveriam, embora não tragam grande déficit à fita. Grande qualidade ao lado da atuação principal, claro.

Enquanto o comentário social e a condução de um thriller são criados a partir do roteiro e da direção do longa, a dramaticidade acaba tendo sua grande exploração a partir do trabalho de seu protagonista, Tom Hanks. Se seu personagem não passa por um desenvolvimento tão detalhado - e nem precisava -, denotando mais uma vez a elegância e sutileza de Greengrass, uma vez que não há grandes explicações por trás do personagem e temos mais material para que o espectador deduza mais sobre sua personalidade - quando perguntado sobre a família, por exemplo, sua resposta é rápida e sucinta, o que demonstra tanto uma possível crise que este vivencie com a família quanto sua tentativa de evitar uma aproximação pessoal com os outros membros da tripulação, sendo ele um capitão que concentra-se apenas na realização de seu trabalho -, mas o grande ápice da interpretação de Hanks surge já no terceiro ato, com os - poucos e contrastantes - momentos de maior explosão do personagem e em sua reação ao momento em que os sequestradores são executados, que demonstram o quanto Phillips foi afetado pelos eventos daquele dia - e ainda que ele não desejava que este fosse encerrado desta forma. Há tempos o eterno Forrest Gump não entregava um trabalho tão eficiente, ainda que não precise investir em maneirismos para marcar sua atuação, um recurso no qual facilmente um ator inferior insistiria para tornar seu trabalho mais marcante, e ainda poderia ser acrescentado que nunca antes, nesta fase mais madura de sua carreira, este grande trabalho havia vindo - A Viagem, no ano passado, pôde ser considerado um ensaio para o que ainda estaria por vir.

Mais do que trazer um grande ator de volta à boa forma, Capitão Phillips efetiva-se como um drama marcante e cheio de adrenalina entregue.

[Avaliação Final: ****¹/2]

Até a próxima.

sábado, 9 de novembro de 2013

Noite de Crime, Uma


The Purge, EUA, 2013. Direção e roteiro: James DeMonaco. Elenco: Ethan Hawke, Lena Headey, Rhys Wakefield, Adelaide Kane, Max Burkholder, Edwin Hodge. Lançamento no Brasil: 01 de novembro de 2013, nos cinemas.

Ver uma ideia original e criativa gerando uma produção de sucesso tem sido um evento cada vez mais raro no Cinema, e a premissa por trás de Uma Noite de Crime estava certamente entre as mais interessantes dos lançamentos deste ano.

O longa do pouco experiente James DeMonaco aborda esta chamada noite de crime, ou de purificação - como mencionado pelas personagens -, que ocorre anualmente nos Estados Unidos, um período de doze horas no qual todo tipo de crime é autorizado a ser cometido pelo governo do país. O apelo político por trás da criação desta abertura nas leis defende que assim a criminalidade durante todo o resto do ano diminui, pois teoricamente todos aqueles que violentariam alguém em outro dia qualquer liberam suas necessidades violentas naquele dia, no qual não serão punidos, e assim evitar a superlotação de cadeias e outros problemas sociais em decorrência da criminalidade; mas a polêmica gerada pela iniciativa é a questão de que, por trás dos prós apresentados, aquela noite na verdade poderia ter a serventia de eliminar os mais desfavorecidos da sociedade - como moradores de rua - através da violência. Por mais que possa gerar estranhamento - vale lembrar também que passa-se em 2022 -, não há duvidas de que a premissa está cheia de potencial.

Ao invés de fazer um plano geral deste evento anual, no entanto, o roteiro do mesmo James DeMonaco prefere focar-se na família Sandin, para trazer a visão de um dos costumes durante esta noite: os mais ricos contratam os melhores sistemas de segurança para se protegerem da violência, e isolam-se em suas casas, como é o caso dos Sandin. Enfrentando por mais um ano esta noite, a família acaba enfrentando um desafio quando seu filho decide abrir as portas da casa para um morador de rua que estava ferido; por conta disto, uma gangue que dedica-se a eliminar moradores de rua passa a perseguir a família e entrar em sua casa para resgatar aquele homem e poder matá-lo, uma vez que o patriarca James Sandin (Ethan Hawke) decide que não entregará o homem, mas lutará ao lado de sua família para proteger-se da dita gangue.

A decisão do roteiro ao delimitar sua abordagem foi arriscada e acabou atrapalhando Uma Noite de Crime. Se no primeiro ato, desde a apresentação dos conceitos até o início do período sem leis, o longa realiza questionamentos e críticas interessantes a respeito deste método e apresenta uma ainda mais interessante alegoria ao sistema norte-americano a partir da sociedade distópica à qual somos introduzidos - ainda voltarei a abordar este ponto -, conforme o desenvolvimento já está mais avançado, a obra prefere despir-se de alguns destes questionamentos a apenas conduzir um thriller de sobrevivência com aquela família, gerando uma competente tensão pelo isolamento dentro da casa e pelas ameaças tão próximas, mas também tornando-se mais superficial e, consequentemente, esquecível.

O momento em que a gangue invade a casa parece acontecer de forma tão fácil que acaba tirando parte do impacto ao qual estávamos sendo por tanto tempo preparados, e isto reflete bem alguns pontos da qualidade do longa. Após uma apresentação eficientemente detalhada, mas não expositiva, do conceito e da ameaça que ronda a família a partir daquele momento, temos uma execução muito apressada e simplista de todos os eventos que narram o confronto entre os Sandin e seus violentos "oponentes". Temos tiros por todos os lados - e a produção é relativamente violenta -, mas é possível prever quando alguém surgirá no canto da cena para matar algum dos mascarados - característica visual da gangue -, assim salvando um dos membros da família, e a direção de DeMonaco nas sequências mais rápidas e movimentadas falha na localização do espectador em cena. Mas o grande pecado da obra parece localizar-se realmente na pressa com que a conclusão é desenvolvida, pois a chegada dos vizinhos-salvadores-traiçoeiros falha na verossimilhança e surge como a mais genérica e conveniente para encerrar a narrativa de modo a fazer com que a família protagonista sobreviva. Talvez alguns minutos a mais ajudassem num desenvolvimento mais cauteloso do terceiro ato.

Ainda assim, Uma Noite de Crime merece destaque simplesmente pela originalidade de sua premissa e pelas críticas que apresenta a seu público. O favorecimento aos mais ricos durante esta noite representa muito bem o maior acesso às oportunidades que ocorre com o mesmo grupo social no sistema capitalista norte-americano durante todo o tempo, e ter o governo bancando toda esta iniciativa deixa claro como foi mais fácil para o estado tomar uma decisão imediata e provisória para lidar com seus problemas da violência e do tratamento para se dar aos moradores de rua e criminosos. O grupo burguês, claro, apoia a iniciativa, pois seus sistemas de segurança podem continuar reinando sobre o resto da sociedade que não tem acesso ao mesmo recurso - até que uma gangue chegue para incomodá-los, mesmo que com princípios reprováveis.

[Avaliação final: **¹/2]

Até a próxima.